sábado, janeiro 30, 2010

morte.

Eu vi um homem morrer na minha frente, semana passada no pronto-socorro. No meio do burburinho da RCP, ouvi coisas como "ele bebeu", "afogou", "perdeu". Devia ter uns 30 anos (a minha idade!) e sim, tinha cara de bêbado. Eu saí da sala de emergência antes dos médicos atestarem o óbito, mas soube que o cara tinha morrido pelos gritos de dor da mãe dele, que eram idênticos aos gritos de dor daquela gestante que faltando uma semana para o parto, teve óbito fetal. Gritos de mães que perdem seus filhos são iguais, independente da idade ou da maneira que morreram, podem acordar um quarteirão inteiro, não pelos decibéis, mas pelo desespero agonizante que não se parece com nenhum outro tipo de choro que eu já ouvi na vida.

Mãe é mãe né.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

um conto curto.

Melissa chegou as seis em casa. Jogou um cigarro na pia só pra ouvir o breve som agonizante da chama que se apaga. Pensou que a vida era como a chama do cigarro, mas afastou rapidamente qualquer outro pensamento funesto. Eram seis da manhã, seis da manhã, e tudo que restava era o prazer que talvez ela pudesse proporcionar a si própria.
Pegou seu celular e tentou olhar a vida sob os olhos míopes do aparelho. Era escuro como uma rua sem saída, como a viela infinita dos seus sonhos. Neles, ela corria com os sapatos nas mãos nessa viela de cascalho. Preferia não dormir a ter que sonhar novamente com a porra da viela.
Encheu o bule de água. Ia fazer um café pra não ter que sonhar hoje. Pegava às sete e meia no trabalho, se caísse no sono fatalmente faltaria. Infelizmente, não havia pães na despensa – um armariozinho sobre a pia. Comer talvez fosse o grande erro, assim como passar a noite enchendo a cara e agüentando cantadas furadas na mesa do bar.
Durante esses anos todos, chegara a conclusão que nenhum homem era sincero, nenhum deles admitiria que só queria sexo. Por que preocupar-se? Por que não jogar o jogo? O bule chiava. Encheu um coador de café em pó enquanto aquele cheiro espalhava pela cozinha. Passou o café letárgica, sentou-se à mesa, virou no copo até a boca, adoçou e adormeceu pra sempre.

Francisco Orlandi Neto

Saudade de vc Chico.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

trecho.


"Ele tinha consciência de que não a amava. Casara-se porque gostava da sua altivez, sua seriedade, sua força e também por um tico de vaidade, mas enquanto ela o beijava pela primeira vez teve a certeza que não haveria nenhum obstáculo para inventar um bom amor. Não falaram a respeito nessa primeira noite em que falaram de tudo até o amanhecer, nem falariam nunca. Mas de um modo geral, nenhum dos dois se equivocou."


Gabriel García Marquez (O amor nos tempos do cólera, pp.198)

É isso.

episódio II

Outro dia eu estava trabalhando, sentada com meus tubinhos cheios de pensamentos e um tantinho de urina. Acho que ninguém imagina o quanto esse tipo de trabalho põe a gente pra pensar. Nesse dia, especificamente, eu tinha mais urinas do que pensamentos e achei bom, pq assim me distrairia, as horas passam mais depressa. Menos filosofia, mais trabalho.
- 1,2,3,4 mil leucócitos e uns 200 mil de hemácias... deve tá com um pedregulho nos rins, coitado. - afasto o microscópio, coço o olho, próxima amostra e PLOFT: a luz queimou.
Não preciso dizer a quantidade de palavrões que eu falei, pq aquele é o microscópio que eu uso pra trabalhar desde o dia que eu cheguei, é o que eu estou acostumada e mesmo tendo outros 3 disponíveis, insisiti em trocar a lâmpada daquele que eu estava usando.
Achei a lampadinha na gaveta, e com todo cuidado fiz a troca. Eu já tinha feito isso outras vezes, então nem foi tão difícil assim. E volto a contar bolinhas, contar num papel o quanto a outra pessoa está doente. Olhando ali células de alguém que eu não conheço, sabendo antes dela mesma que remédio ela vai ter que tomar. Que tipo de medicina é essa, que não se olha na cara de ninguém, mas pode-se descobrir de um tudo da vida da pessoa? Perdida, completamente perdida nas minhas filosofias de madrugada, nos pensamentos de tubinhos, na musica cafona que as recepcionistas ouvem, começou o cheiro de queimado. "Ah não...ele não vai pifar..."
Sim ele pifou. O microscópio eleito, o que eu tive cuidado e preferia, mesmo sem ter testado os outros, agora estava cheirando queimado. Desliguei. Respirei. Não sei consertar microscópio e mesmo que soubesse não teria tempo pra isso.
Contrariada, tirei da tomada e enrolei o fio em volta dele, com tanta pena que parecia ter morrido alguém. Teria que escolher algum daqueles outros e depois de testá-los, peguei um menos pior. Até que ele não era tão ruim, a altura era boa, mas estava um pouco desfocado, tipo TV que não pega, cheia de sombras, tive que tomar cuidado pra não contar dobrado. E assim foi, durante duas horas seguidas, até que lembrei do condensador*.
Bastou um toque de leve pra descobrir que o melhor microscópio do mundo estava o tempo todo do meu lado, sua nitidez de imagem, sua luz branca, seu foco incrível. Se eu soubesse disso antes, já estaria trabalhando com ele há muito tempo e agora, eu não largo dele por nada.

Nunca imaginei que uma luz queimada me faria enxergar melhor =)

*Condensador: sistema de lentes que alinha e focaliza a luz da lâmpada sobre a amostra. Localiza-se na parte inferior da platina. ( olha aqui )